quinta-feira, 24 de março de 2011

Reflexão sobre o caso da Líbia - parte 4 (fim)

Conforme explicamos, no “caso da Líbia”alguns países decidiram, em função de interesses distintos da simples protecção da população civil, retirar do poder o governante de um país estrangeiro. Para atingir esse objectivo, os líderes desses países usaram os importantes meios de comunicação com cobertura internacional de que dispõe os seus países.

Recordamos que num passado recente, os governantes desses países, plenamente informados e esclarecidos sobre o estado das liberdades e direitos do Homem na Líbia (que de lá pra cá pouco ou nada mudou), receberam ou foram recebidos por Muammar al-Kadhafi, no quadro do reforço das relações bilaterais entre a Líbia e os seus Estados.

Segundo a imprensa internacional (sobretudo ocidental) e Organizações Não-Governamentais (ONG’s, com as quais o Governo da Líbia sempre manteve relações de conflito), a situação prevalecente na Líbia, desde o início da insurreição, apelava a uma acção urgente das Nações Unidas, invocando a responsabilidade de proteger conforme definimos.

No entanto, podemos questionar-nos sobre os critérios que utiliza a comunidade internacional para seleccionar as populações que beneficiam da protecção internacional no quadro da responsabilidade de proteger. Pois, os Líbios não são o único povo que necessita de protecção contra os quatro crimes que permitem invocar a responsabilidade de proteger.

Porque não utilizar o mesmo princípio na Tchetchenia ou no Tibete? Será que alguns civis nesses países não são vítimas de genocídio, crimes de guerra, purificação étnica e crimes contra a humanidade? Podemos avançar três respostas para a primeira pergunta: 1- porque o Estado em causa dispõe de um arsenal militar que não permite sequer a hipótese de uma acção militar como a que está a decorrer na Líbia; 2- porque na qualidade de membro permanente do Conselho de Segurança, esses Estados obviamente vetariam qualquer decisão nesse sentido; 3- porque não há interesses estratégicos suficientemente fortes para que se corra o risco de uma guerra contra a Rússia ou contra a China.

A qualidade de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com direito de veto, pode permitir que estes membros utilizem o principal órgão mundial de segurança colectiva para servir os seus interesses ou violar as disposições da Carta das Nações Unidas sem incorrer em nenhuma sanção ou mesmo chamada de atenção, porque o actual sistema não o permite.

Podemos concluir que o actual sistema de segurança colectiva permite a legitimação da “lei do mais forte”, contrária ao princípio de igualdade soberana dos Estados membros. Enquanto prevalecer o sistema de veto com cada um dos cinco membros permanentes a conseguir singularmente contrariar a posição de 14 outros Estados no Conselho de Segurança e 191 Estados membros da ONU, a segurança colectiva dependerá dos interesses desses Estados. Em suma, uma das lições do “caso da Líbia” reside na necessidade urgente de se reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas, de forma a que deixe de ser o órgão de legitimação de políticas e interesses de um restrito grupo de Estados.

Podemos igualmente concluir pelo que precede que a voz da União Africana dificilmente se consegue impor na resolução de um conflito ou crise continental. Porque lhe faltam os meios e porque lhe falta a união necessária para evitar cacofonias. O caminho a percorrer para a verdadeira união continental ainda é longo e sinuoso… entretanto, talvez até lá Muammar al-Kadhafi deixe de ser o “Líder” da Líbia, porque assim o pretende “a lei do mais forte”!!


Aguinaldo Baptista

Reflexão sobre o caso da Líbia - parte 3

6. Entre a responsabilidade de proteger e o princípio de não-ingerência

Sendo por demais conhecido o grau de liberdades que prevalece na Líbia, podemos considerar que ao se manifestarem aberta e veementemente contra o “Líder”, incluindo através de acções armadas e a tomada de cidades, todos sabemos que os insurgentes de Benghazi assumiram um risco muito elevado para as suas vidas, suas famílias e respectivos bens. Frequentemente, o Estado da Líbia é criticado por organizações internacionais, por desrespeito aos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.

Desde o início da insurreição, diversas organizações internacionais entre as quais a União Africana, a Liga Árabe, a Conferência Islâmica, a União Europeia e as Nações Unidas manifestaram a sua preocupação relativamente à protecção dos civis, a eventuais casos de violação dos direitos do Homem e à eventual presença de mercenários que estariam a apoiar o exército líbio nas suas operações contra os insurgentes.

Caso a cidade de Benghazi fosse tomada pelo exército líbio, provavelmente seguir-se-ia uma forte repressão, que certamente atingiria indiscriminadamente os habitantes da cidade, por terem tomado parte activa ou passiva na insurgência.

Obviamente, a comunidade internacional, a União Africana, a Liga Árabe, a ONU e outras organizações internacionais ou Estados não poderiam assistir como espectadores à aplicação das medidas repressivas acima referidas, que seriam eventualmente constitutivas de crimes contra a humanidade.

Nesse tipo de casos, em que um Estado não cumpre com o seu papel de proteger as suas populações, a comunidade internacional deve agir (!) no quadro de uma responsabilidade colectiva: a responsabilidade de proteger.

A responsabilidade de proteger (utiliza-se igualmente RtoP ou R2P, em inglês) é um conceito ou norma internacional definida em muitos textos internacionais, nomeadamente, no Consenso de Ezulwini (2005) da União Africana, (http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:knfeO7BmdKYJ:www.africa-union.org/News_Events/Calendar_of_%2520Events/7th%2520extra%2520ordinary%2520session%2520ECL/Ext%2520EXCL2%2520VII%2520Report.doc+ezulwini+consensus&cd=1&hl=en&ct=clnk&gl=us&clien), nos parágrafos 138 e a39 do Documento Final da Cimeira Mundial de 2005 (http://www.who.int/hiv/universalaccess2010/worldsummit.pdf), ou ainda no Relatório da ONU intitulado “Implementando a Responsabilidade de Proteger”, de 2009 (http://globalr2p.org/pdf/SGR2PEng.pdf).

Concretamente o conceito da responsabilidade de proteger permite à comunidade internacional intervir num determinado país, mesmo sem o seu consentimento, para proteger populações civis. Considera-se que ao cometer ou permitir que os crimes de genocídio, crimes de guerra, purificação étnica e crimes contra a humanidade sejam cometidos contra as suas populações, o Estado não está a assumir as suas responsabilidades como soberano delegado, visto que o soberano original (o povo) é que está sem a protecção de que deveria beneficiar da parte das instituições às quais delegou a sua soberania. Nesse caso a comunidade internacional tem a responsabilidade de apoiar o referido Estado nessa tarefa. E obviamente, nesses casos, o Estado em causa não pode validamente invocar o respeito do princípio de não-ingerência.

No entanto podemos considerar que há respeito do princípio de não-ingerência quando os Presidentes Nicolas Sarkozy e Barack Obama, como o Primeiro-Ministro Gordon Brown informam ao “Líder” Kadhafi que ele tem de abandonar o poder. Não ficando pelas simples declarações a França e o Reino Unido prepararam um projecto de resolução que lhes permitisse justificar o que se iria seguir. Projecto esse que deixou pouco ou nenhum espaço à mediação ou ao diálogo e claramente privilegiou as acções militares.

Reflexão sobre o caso da Líbia - parte 2




4. Que papel para a União Africana?

No dia 10 de Março de 2011, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana (CPS/UA) reuniu-se em Addis Abeba, Etiópia e, entre outros assuntos, debruçou-se sobre o “caso da Líbia”.
No comunicado da sua 265ª reunião (http://www.au.int/fr/sites/default/files/Communiqué%20Libya%20_eng_%20final.pdf), o CPS/UA manifestou a sua preocupação face aos acontecimentos na Líbia, sublinhou a legitimidade das aspirações do povo líbio “à democracia, reforma política, justiça social, à paz e segurança, assim como ao desenvolvimento sócio-económico” e à necessidade que essas aspirações sejam satisfeitas “de forma pacífica e democrática”. O CPS/UA declara igualmente ter tomado nota “da vontade das autoridades líbias de se engajar na via das reformas”.

O CPS/UA, defendeu o respeito da integridade territorial da Líbia, assim como a rejeição a qualquer intervenção militar estrangeira.

Como forma de resolver a crise, a União Africana decidiu criar um Comité composto por cinco Chefes de Estado (dos seguintes países: África do Sul, Congo, Mali, Mauritânia, e Uganda) e pelo Presidente da Comissão, com mandato para interagir com todas as partes líbias, facilitando o diálogo entre elas sobre as reformas apropriadas. O Painel de Chefes de Estado recebeu igualmente mandato para interagir com os parceiros da União Africana, coordenando os seus esforços para a resolução da crise.

Em nossa opinião, a decisão do Conselho de Paz e Segurança foi equilibrada e no sentido de preservar tanto a paz e o diálogo entre as partes líbias, como a integridade territorial da Líbia.

Estas decisões da União Africana mereceram muito pouca cobertura da parte da imprensa internacional, que estava mais preocupada em acompanhar a delegação do Conselho Nacional de Transição criado em Benghazi, cujos representantes foram recebidos nesse mesmo 10 de Março pelo Presidente Nicolas Sarkozy.

É certo que o Painel de Chefes de Estado não constitui uma força militar e dificilmente conseguiria convencer o “Irmão-Líder” a cessar a progressão do exército contra o último e principal bastião da oposição. Mas os parceiros da União Africana poderiam ter tentado colaborar com a organização continental na materialização do mandato do Painel, o que não aconteceu.

De acordo com o Comunicado da Reunião do Painel de Alto Nível da União Africana sobre a Líbia, datado de 19 de Março de 2011, o Painel solicitou a autorização para se deslocar à Líbia, a fim de manter encontros com o Governo da Líbia e com o Conselho Nacional de Transição. É difícil compreender que razões estarão por detrás do bloqueio de uma tentativa de mediação da União Africana, que nos conduz a reflectir sobre a legitimidade das medidas tomadas no quadro da sua implementação.

5. Sobre a Resolução 1973 e a legitimidade das medidas tomadas no quadro da sua implementação

A Resolução 1973 foi votada no dia 17 de Março de 2011. Introduzida pela França, pelo Reino Unido e pelo Líbano, essa Resolução foi votada por dez membros do Conselho de Segurança (França, Reino Unido, Líbano, Estados Unidos, Bosnia-Herzegovina, Gabon, Nigéria, Portugal e África do Sul). Cinco abstiveram-se (Rússia, China, Brasil, Alemanha e Índia).

Notamos que dois membros permanentes manifestaram pela sua abstenção as suas reservas e dúvidas (ver o blogue de Jean-Dominique Merchet – jornalista francês, especialista em questões militares http://www.marianne2.fr/blogsecretdefense/?start=10).

A China recordou que sempre se opôs ao recurso à força nas relações internacionais e considera que alguns aspectos da Resolução não estavam claramente definidos. Esta foi igualmente a razão da abstenção da Rússia, que tinha, no momento do voto muitas dúvidas quanto aos modos de implementação da Resolução.

A Índia notou a falta de existência de informação credível sobre a situação que permitisse justificar o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea. O Brasil por seu lado considerou que as medidas propostas vão para além da solicitação da Liga Árabe, notando que não está convencido que a utilização da força permitirá atingir o principal objectivo das Nações Unidas e da Liga Árabe, ou seja a protecção das populações civis.

Podemos compreender que esses cinco Estados, que também são parte da comunidade internacional, e entre os quais estão dois membros permanentes e três que poderão no quadro de uma reforma do Conselho de Segurança, eventualmente, integrá-lo na qualidade de membros permanentes, emitiram sérias reservas quanto à implementação da Resolução que se enquadra no capítulo 7.

Notamos igualmente que três países africanos (Nigéria, Gabon e África do Sul), dos quais dois são actualmente membros do Conselho de Paz e Segurança (África do Sul e Nigéria) votaram a Resolução 1973, apesar desta ultrapassar claramente a decisão do Conselho de Paz e Segurança da União Africana. A decisão da África do Sul em votar a Resolução 1973 é ainda mais incompreensível, na medida em que este país é igualmente membro do Painel criado pela União Africana. Então, podemos questionar-nos com alguma preocupação, sobre o tipo de união continental que estamos a criar e sobre a coordenação entre a agenda continental e a agenda internacional de alguns Estados membros da União Africana.

Logo após os primeiros bombardeamentos, algumas vozes, nomeadamente a de Amr Moussa, Secretário-Geral da Liga Árabe criticaram os ataques aéreos, considerando que essas operações ultrapassam o mandato que foi conferido pela Resolução 1973.

O que diz concretamente a Resolução 1973?

A Resolução determina o cessar-fogo imediato (depreende-se que seja tanto por parte do exército como por parte da insurreição); a cessação das violências contra os civis (sem especificar quais, partimos que são todos os que se encontram em território líbio); estabelece uma interdição de todos os voos no território da Líbia; e estabelece um embargo sobre as armas em direcção da Líbia. Por outro lado, a Resolução exclui a possibilidade de se estabelecer uma força estrangeira de ocupação no território líbio.

Sabendo qual é o mandato da Resolução 1973, questionamo-nos: o que temos estado a assistir desde o dia 19 de Março? Unidades dos exércitos francês, britânico e americano têm estado a bombardear as posições avançadas do exército líbio a caminho de Benghazi, têm estado a bombardear as unidades da defesa anti-aérea em todo o território da Líbia, e de acordo com declarações de representantes desses exércitos, preparam-se para bombardear os principais centros de comando do exército da Líbia, assim como estruturas governamentais.

Fica difícil compreender como é que estas acções se enquadram na Resolução 1973. Pois, a Resolução 1973 não confere aos exércitos que agem para aplicá-la mandato para destruir o exército líbio; não lhe confere mandato para alterar o equilíbrio entre o exército da líbia e os insurgentes em Benghazi; e não confere mandato a esses exércitos para atacar edifícios administrativos ou mesmo mandato para agir em zonas nas quais não haja civis cuja vida se encontre ameaçada no quadro das operações do exército da Líbia contra os insurgentes. Então o que é que justifica o bombardeamento de Tripoli? (http://www.france24.com/fr/20110320-libye-attaque-coalition-internationale-france-avions-navire-missiles-tripoli-kadhafi-bombardement)

Relativamente à protecção dos civis, conforme o mandato conferido pela Resolução 1973, temos de ter em conta que dos dois lados há civis armados, que tomam parte em acções militares. Podemos ainda considerá-los civis ou vamos considerar que esses indivíduos assumem o papel de forças para-militares? E se o exército nacional de um país opera contra milícias de insurgentes, por definição forças para-militares ilegais, podemos considerar que o exército nacional está a atacar civis? Recordamos que no quadro da lei americana USA PATRIOT act, todos os indivíduos capturados com armas na mão foram considerados “inimigos combatentes” e julgados em tribunais militares especiais, ou seja, os Estados Unidos consideram que um indivíduo armado e que age contra um exército deixa de ser um civil.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Reflexão sobre o "caso da Líbia" - parte 1

O texto que segue está publicado em três partes, de forma a permitir a melhor leitura

No dia 19 de Março de 2011, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América utilizaram a suas forças militares para bombardear um país africano: a Líbia.

A acção das autoridades desses países baseou-se na Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, votada no dia 17 de Março de 2011, através da qual dez Estados decidiram o bombardeamento de um Estado membro de uma Organização internacional que compreende 192 Estados. Cinco outros Estados membros do Conselho de Segurança abstiveram-se de tomar parte ao voto da referida resolução, cujas principais disposições estão resumidas no mirexonline.blogspot.com/p/noticias.html.

A operação das forças coligadas contra o governo da Líbia, coloca algumas questões de relações internacionais, de direito internacional que merecem algumas considerações.

Convidamos o distinto leitor a reflectir sobre os factos que conduziram o Conselho de Segurança das Nações Unidas a tomar essa decisão; sobre o papel da “comunidade internacional”, onde destacaremos os posicionamentos da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos da América. Colocado que estará o problema, procuraremos reflectir sobre as soluções propostas para a resolução do “caso líbio”, nomeadamente a Resolução do Conselho de Paz e Segurança da União Africana; e a Resolução 1973. As operações militares coligadas conduzem-nos por fim a reflectir sobre o princípio da responsabilidade de proteger e a não-ingerência nos assuntos internos de um Estado; e sobre as eventuais consequências da referida intervenção militar.

1. Ventos de mudança, o mundo árabe em ebulição

No dia 17 de Dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisino (que não tinha concluído o liceu, contrariamente a notícias de alguns órgãos de imprensa segundo as quais ele tinha um diploma universitário gulfnews.co/news/region/Tunísia/man-at-the-centre-of-tunisia-unrest-recuperating-doctors-say-1.738967), desesperado pela dificuldade em encontrar um emprego, humilhado publicamente pelas autoridades policiais do seu país (mais concretamente polícia municipal, correspondente aos “fiscais” em Angola), tomou uma medida desesperada ao imolar-se defronte ao edifício da administração local da sua cidade. Mohamed Bouazizi viria a falecer no dia 04 de Janeiro, na sequência dos seus ferimentos e queimaduras.




Na imagem: Presidente Ben Ali, visitando Mohammed Bouazizi no Hospital. 23 de Janeiro de 2011

Este acontecimento, iria dar lugar a manifestações sem precedente na Tunísia, que levariam algumas semanas depois à abdicação do Presidente Ben Ali, no poder há 23 anos (de 07 de Novembro de 1987 a 14 de Janeiro de 2011).

Os manifestantes reclamaram por melhores condições de vida, mais empregos, mais respeito das autoridades do Estado pelos cidadãos (que supostamente representam), mais liberdades e mais democracia. Tudo isso são reivindicações com as quais qualquer pessoa, independentemente das suas características subjectivas, deve concordar. Pois, tal como mencionado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, “todos os homens são iguais, com certos direitos inalienáveis, tais como a vida, a igualdade e a busca da felicidade”.

Rapidamente, as reivindicações da Tunísia transportar-se-iam para outro países da África do Norte e do Médio Oriente, em particular o Egipto, onde o Presidente Hosni Mubarak (no poder há 30 anos, de 14 de Outubro de 1981 a 11 de Fevereiro de 2011) foi interpelado por parte do seu povo (honestamente não se pode falar do povo todo, porque os apoiantes de Hosni Mubarak também são parte do povo e não se reviam nessas manifestações), que pediu igualmente melhores condições de vida, mais empregos, mais respeito das autoridades do Estado pelos cidadãos (que supostamente representam), mais liberdades e mais democracia. Semanas depois do início dos protestos, o recém nomeado Vice-Presidente Omar Suleiman anunciou que Hosni Mubarak tomou a decisão de abdicar da sua função de Presidente da República.




Hosni Mubarak Presidente do Egipto, de 14 de Outubro de 1981 a 11 de Fevereiro de 2011

Em algumas semanas dois Presidentes africanos abdicaram das suas funções e diversos países iniciaram mudanças da sua política interna. Poderíamos questionar-nos sobre se esses povos se sentem mais livres e se essa é a única forma para se atingir as reivindicações desses manifestantes, mas esse não é aqui o nosso objectivo.

A fase de transição poderá levar alguns meses, anos ou mesmo décadas. Por exemplo em Portugal a transição do Estado Novo para a democracia durou de 1974-1986, pois só em 1986 foi eleito um Presidente civil. Entretanto, durante essa transição interna, o equilíbrio geopolítico regional será afectado, de forma ainda imprevisível.

A onda de reivindicações transportou-se igualmente para a Líbia, liderada há cerca de 42 anos por Muammar al-Kadhafi e seus apoiantes. Aqui, uma das principais reivindicações dos manifestantes foi a abdicação pura e simples do “Líder” líbio. A segunda cidade do país, Benghazi rebelou-se, foi tomada pelos manifestantes. Estes tomaram de assalto depósitos de armas, constituíram um Conselho Nacional de Transição, manifestaram a sua intenção de marchar sobre Tripoli e de destituir Muammar al-Kadhafi, que respondeu inicialmente com estupefacção e depois com repressão. A Líbia vive actualmente um início de guerra civil.






Muammar al-Kadhafi, "Líder Fraternal e Guia da Revolução da Líbia", desde 01 de Setembro de 1969


Quando a Resolução 1973 foi votada e a aviação coligada começou os seus bombardeamentos sobre a Líbia, o exército estava às portas de Benghazi.

Estes são os factos!

2. Sobre o papel da "comunidade internacional" e da "imprensa internacional"

Desde o início dos acontecimentos acima referidos, a imprensa internacional fez aquilo que julga ser o seu papel: informar de forma (supostamente) objectiva.

Na verdade, a imprensa internacional foi mais um actor, do que um espectador, orientando a forma como a comunidade internacional deveria analisar a situação. Rapidamente, os Presidentes da Tunísia e do Egipto, bem como o “Líder” da Líbia foram chamados “ditadores”; falou-se/fala-se frequentemente do “regime de …” (uma expressão a todos os títulos pejorativa – reparemos que nunca se fala de “regime Obama” ou “regime Sarkozy”); o exército da Líbia transformou-se nas “forças fieis ao coronel Kadhafi” e falou-se do “povo”, como se apenas os manifestantes pudessem ser considerados “povo”. Tudo isso tem por efeito criar opinião.

Essa imprensa multiplicou as reportagens do lado dos manifestantes, chegando mesmo a ter atitudes pouco compreensíveis da parte de repórteres certamente experientes. Como por exemplo um repórter francês completamente extasiado pelo facto dos manifestantes terem tomado um depósito de armas, que estavam a ser distribuídas a quem as solicitasse. Será que devemos ficar felizes pelo facto de populações civis andarem com armas de guerra, sem qualquer controlo, incluindo tanques de guerra, armas anti-aéreas, minas, lança-roquetes e metralhadoras de todos os tipos incluindo as suas munições?

A imprensa, rege-se pelos interesses ideológicos das suas redacções ou dos seus patrões e por interesses mercantis, muitas vezes, privilegiando o sensacionalismo mais do que a análise objectiva dos factos. A imprensa ocidental é considerada o “quarto poder” tendo em conta o papel que pode jogar na informação ao público sobre as decisões tomadas pelos órgãos detentores dos três poderes (executivo, legislativo e judicial). No entanto, a imprensa também pode influenciar e servir para influenciar a opinião pública e a comunidade internacional, dois conceitos mediáticos cuja existência e definição são cientificamente contestadas.

O que é concretamente a comunidade internacional? Somos forçados a constatar que a opinião do Presidente/Chefe do Governo de um país em vias de desenvolvimento não tem o mesmo peso que a opinião do Presidente/Chefe do Governo de um país desenvolvido.

Muitos Presidentes/Chefes do Governo e Ministérios dos Negócios Estrangeiros/Relações Exteriores de países em vias de desenvolvimento terão expressado publicamente a sua opinião relativamente ao “caso da Líbia”. No entanto, a imprensa internacional não acorda a esses pronunciamentos o mesmo peso ou importância que aos pronunciamentos dos Presidentes da França, dos Estados Unidos ou ao Primeiro-Ministro britânico e seus respectivos Ministros dos Negócios Estrangeiros.

A opinião dos governantes da França, dos Estados Unidos e do Reino Unidos passa vezes sem conta nos principais noticiários e jornais de todo o mundo, sobretudo os que têm um serviço dito “internacional”. Essa opinião da “comunidade internacional” que se resume a alguns países (entre os mais industrializados do mundo) influencia por sua vez as decisões que tomará o “resto da comunidade internacional”, incluindo no momento do voto de resoluções do Conselho de Segurança!

Nesse caso, temos que nos questionar sobre os interesses subjectivos dos três países (França, Estados Unidos e Reino Unido), cuja opinião se confundiu com ou se tornou a da “comunidade internacional”, mesmo que esses interesses sejam divergentes dos interesses da maioria dos países do mundo.

3. Sobre as relações entre a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América com a Líbia, e os interesses estratégicos destas potências ocidentais

República Francesa. Desde o fim da guerra fria, a política externa da França e os posicionamentos estratégicos desse país, sem dúvida um dos mais influentes do mundo, têm sido alvo de críticas e marcado por muitos passos em falso, nomeadamente relativamente à Yugoslávia/Sérvia/Croácia, ao Ruanda, ao Zaíre/RDC, à Côte d’Ivoire, às questões de imigração africana, e mais recentemente à Tunísia.

Relativamente à Líbia, recordamo-nos que em Dezembro de 2007, o “Líder” Muammar al-Kadhafi efectuou uma visita de cinco dias à França, durante a qual foi recebido três vezes (duas audiências e um jantar oficial) no Palácio Presidencial francês pelo Presidente Nicolas Sarkozy (que agora o chama “ditador” e que foi a Tripoli em Julho de 2007). Na altura, Secretária de Estado dos Direitos do Homem, Rama Yade, manifestou-se publicamente contra a visita do “Líder” Líbio a Paris, e por isso, foi “ralhada” pelo Presidente Nicolas Sarkozy. Na altura, Muammar al-Kadhafi já não era e ainda não tinha voltado a ser considerado “ditador”. Mas será que nessa altura o “Líder” era um democrata aos olhos do Presidente francês? Ou os interesses franceses sobrepunham-se às liberdades do povo líbio que hoje a França pretende defender?

A imprensa francesa, hoje muito crítica, extasiou-se pelas extravagâncias do “Irmão-Líder”, como o cortejo de mais de 20 viaturas blindadas, as “amazonas” que o protegem, a tenda onde ele ficou (no Parque do Hotel Marigny) e as visitas do "Líder"ao Museu do Louvre e a Versailles (praticamente encerrados para a ocasião).

Assim que começou o movimento insurreccional na Líbia, as autoridades francesas, que haviam prometido ao Presidente Ben Ali, o seu "savoir-faire" em matéria de policiamento de manfestações, manifestaram o seu apoio ao Conselho Nacional de Transição (CNT) criado em Benghazi, cujos membros foram recebidos pelo Presidente francês no dia 10 de Março de 2011. Ou seja, nessa altura Muammar al-Kadhafi voltara a ser um “ditador” e o seu dinheiro e parentes outrora recebidos sem qualquer problema em França e no Ocidente, de forma geral, deixaram de ser bem-vindos. Obviamente o dinheiro e bens móveis e imóveis que já se encontravam em território francês e ocidental, foram congelados.

Será que esta rapidez de alinhamento de Nicolas Sarkozy com o CNT, não serve para fazer esquecer a sumptuosa visita de Muammar al-Kadhafi a Paris? E será que não há interesses financeiro-petrolíferos em jogo?

Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. Este país foi, pelo passado severamente afectado por atentados terroristas cometidos por agentes da Líbia contra aviões civis comerciais que vitimaram algumas centenas de passageiros (caso do “atentado de Lockerbie” e do “voo DC-10 da UTA”).




Parte do voo DC-10 da UTA, que explodiu, em 1989, no deserto de Tenere (Niger). O atentado foi conduzido por agentes do Estado líbio

Em 2004, o Primeiro-Ministro Tony Blair deslocou-se à Líbia e foi recebido pelo “Líder” Líbio. Nessa altura a Líbia já tinha assumido a paternidade dos referidos atentados e indemnizado as famílias das vítimas (4 milhões de dólares Americanos por vítima). Pensamos que na altura em que o Primeiro-Ministro britânico visitou a Líbia, o povo, o Governo e a imprensa britânicos tinham plena consciência e conhecimento do grau de liberdades do povo líbio.

Estados Unidos da América. Entre 1979 e 2006, os Estados-Unidos da América e a Líbia iterroperam as suas relações diplomáticas. Cinco anos após os atentados de 11 de Setembro, e no auge da luta contra o terrorismo internacional, a Secretária de Estado referiu-se à excelente relação entre os dois países na luta contra o terrorismo.

Por outro lado, o lobby petrolífero fez pressão sobre o Congresso para a normalização das relações com a Líbia, o que foi feito, apesar dos alertas de exilados líbios nos Estados Unidos, segundo os quais a situação dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais na Líbia não iria melhorar (http://www.afrik.com/article9841.html) .

Os Estados Unidos, como qualquer Estado, defendem os seus interesses. Mas nem todos se permitem fazê-lo sem ter em conta a comunidade internacional.

É hoje um facto de domínio público que esse país, uma das mas antigas democracias do mundo conduziu uma guerra de agressão contra as autoridades de um país membro da Organização das Nações Unidas (o Iraque), com base em informações completamente falsas e cuja falsidade era de conhecimento dos serviços de inteligência desse país.

É igualmente de domínio público que na sequência do desfecho da acção militar americana, empresas americanas de construção, de petróleo e gás, e de fornecimento de bens e serviços obtiveram contratos de natureza diversa no Iraque, orçados em muitos milhões, de unidades qualquer que seja a moeda escolhida.

Ou seja, os Estados Unidos da América utilizaram a sua superioridade militar para destituir um Presidente que não correspondia aos seus interesses estratégicos, económicos e energéticos. Acção que é claramente contrária ao princípio de não-ingerência defendido pela Organização das Nações Unidas e afectou a paz mundial, contribuindo para a propagação e desenvolvimento do terrorismo no Iraque, que vitimou milhares de vidas entre civis iraquianos, funcionários internacionais, jornalistas, militares e polícias iraquianos, americanos e de outras nacionalidades envolvidas, sem contar a destruição de infrastruturas.

Recordamos ainda que no quadro dessa guerra, os Estados Unidos da América e seus aliados, recorreram aos serviços de mercenários. Por outro lado, militares americanos cometeram aquilo que as Convenções de Genebra de 1949 definem como sendo crimes de guerra.

Os elementos que precedem não são opiniões! no passado, as acções desses países foram, por vezes, contrárias à paz mundial e movidas por interesses subjectivos, bastante distintos daqueles que estão plasmados na Carta das Nações Unidas.

Conhecer e compreender os posicionamentos desses três Estados membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas é importante, na medida em que esses Estados votaram a Resolução 1973 (a França e o Reino Unido introduziram o projecto de resolução), estão na primeira linha dos ataques contra a Líbia e os seus Presidentes/Primeiro-Ministro pronunciaram-se publicamente pela abdicação do Presidente Kadhafi.

Tendo em conta que a Líbia é um dos seus Estados membros, importa questionarmo-nos sobre o que pensa a União Africana de tudo isto? Será que a Organização vai ficar espectadora assistindo à emergência de uma guerra civil no continente e ao bombardeamento de um Estado membro?