segunda-feira, 21 de março de 2011

Reflexão sobre o "caso da Líbia" - parte 1

O texto que segue está publicado em três partes, de forma a permitir a melhor leitura

No dia 19 de Março de 2011, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América utilizaram a suas forças militares para bombardear um país africano: a Líbia.

A acção das autoridades desses países baseou-se na Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, votada no dia 17 de Março de 2011, através da qual dez Estados decidiram o bombardeamento de um Estado membro de uma Organização internacional que compreende 192 Estados. Cinco outros Estados membros do Conselho de Segurança abstiveram-se de tomar parte ao voto da referida resolução, cujas principais disposições estão resumidas no mirexonline.blogspot.com/p/noticias.html.

A operação das forças coligadas contra o governo da Líbia, coloca algumas questões de relações internacionais, de direito internacional que merecem algumas considerações.

Convidamos o distinto leitor a reflectir sobre os factos que conduziram o Conselho de Segurança das Nações Unidas a tomar essa decisão; sobre o papel da “comunidade internacional”, onde destacaremos os posicionamentos da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos da América. Colocado que estará o problema, procuraremos reflectir sobre as soluções propostas para a resolução do “caso líbio”, nomeadamente a Resolução do Conselho de Paz e Segurança da União Africana; e a Resolução 1973. As operações militares coligadas conduzem-nos por fim a reflectir sobre o princípio da responsabilidade de proteger e a não-ingerência nos assuntos internos de um Estado; e sobre as eventuais consequências da referida intervenção militar.

1. Ventos de mudança, o mundo árabe em ebulição

No dia 17 de Dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisino (que não tinha concluído o liceu, contrariamente a notícias de alguns órgãos de imprensa segundo as quais ele tinha um diploma universitário gulfnews.co/news/region/Tunísia/man-at-the-centre-of-tunisia-unrest-recuperating-doctors-say-1.738967), desesperado pela dificuldade em encontrar um emprego, humilhado publicamente pelas autoridades policiais do seu país (mais concretamente polícia municipal, correspondente aos “fiscais” em Angola), tomou uma medida desesperada ao imolar-se defronte ao edifício da administração local da sua cidade. Mohamed Bouazizi viria a falecer no dia 04 de Janeiro, na sequência dos seus ferimentos e queimaduras.




Na imagem: Presidente Ben Ali, visitando Mohammed Bouazizi no Hospital. 23 de Janeiro de 2011

Este acontecimento, iria dar lugar a manifestações sem precedente na Tunísia, que levariam algumas semanas depois à abdicação do Presidente Ben Ali, no poder há 23 anos (de 07 de Novembro de 1987 a 14 de Janeiro de 2011).

Os manifestantes reclamaram por melhores condições de vida, mais empregos, mais respeito das autoridades do Estado pelos cidadãos (que supostamente representam), mais liberdades e mais democracia. Tudo isso são reivindicações com as quais qualquer pessoa, independentemente das suas características subjectivas, deve concordar. Pois, tal como mencionado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, “todos os homens são iguais, com certos direitos inalienáveis, tais como a vida, a igualdade e a busca da felicidade”.

Rapidamente, as reivindicações da Tunísia transportar-se-iam para outro países da África do Norte e do Médio Oriente, em particular o Egipto, onde o Presidente Hosni Mubarak (no poder há 30 anos, de 14 de Outubro de 1981 a 11 de Fevereiro de 2011) foi interpelado por parte do seu povo (honestamente não se pode falar do povo todo, porque os apoiantes de Hosni Mubarak também são parte do povo e não se reviam nessas manifestações), que pediu igualmente melhores condições de vida, mais empregos, mais respeito das autoridades do Estado pelos cidadãos (que supostamente representam), mais liberdades e mais democracia. Semanas depois do início dos protestos, o recém nomeado Vice-Presidente Omar Suleiman anunciou que Hosni Mubarak tomou a decisão de abdicar da sua função de Presidente da República.




Hosni Mubarak Presidente do Egipto, de 14 de Outubro de 1981 a 11 de Fevereiro de 2011

Em algumas semanas dois Presidentes africanos abdicaram das suas funções e diversos países iniciaram mudanças da sua política interna. Poderíamos questionar-nos sobre se esses povos se sentem mais livres e se essa é a única forma para se atingir as reivindicações desses manifestantes, mas esse não é aqui o nosso objectivo.

A fase de transição poderá levar alguns meses, anos ou mesmo décadas. Por exemplo em Portugal a transição do Estado Novo para a democracia durou de 1974-1986, pois só em 1986 foi eleito um Presidente civil. Entretanto, durante essa transição interna, o equilíbrio geopolítico regional será afectado, de forma ainda imprevisível.

A onda de reivindicações transportou-se igualmente para a Líbia, liderada há cerca de 42 anos por Muammar al-Kadhafi e seus apoiantes. Aqui, uma das principais reivindicações dos manifestantes foi a abdicação pura e simples do “Líder” líbio. A segunda cidade do país, Benghazi rebelou-se, foi tomada pelos manifestantes. Estes tomaram de assalto depósitos de armas, constituíram um Conselho Nacional de Transição, manifestaram a sua intenção de marchar sobre Tripoli e de destituir Muammar al-Kadhafi, que respondeu inicialmente com estupefacção e depois com repressão. A Líbia vive actualmente um início de guerra civil.






Muammar al-Kadhafi, "Líder Fraternal e Guia da Revolução da Líbia", desde 01 de Setembro de 1969


Quando a Resolução 1973 foi votada e a aviação coligada começou os seus bombardeamentos sobre a Líbia, o exército estava às portas de Benghazi.

Estes são os factos!

2. Sobre o papel da "comunidade internacional" e da "imprensa internacional"

Desde o início dos acontecimentos acima referidos, a imprensa internacional fez aquilo que julga ser o seu papel: informar de forma (supostamente) objectiva.

Na verdade, a imprensa internacional foi mais um actor, do que um espectador, orientando a forma como a comunidade internacional deveria analisar a situação. Rapidamente, os Presidentes da Tunísia e do Egipto, bem como o “Líder” da Líbia foram chamados “ditadores”; falou-se/fala-se frequentemente do “regime de …” (uma expressão a todos os títulos pejorativa – reparemos que nunca se fala de “regime Obama” ou “regime Sarkozy”); o exército da Líbia transformou-se nas “forças fieis ao coronel Kadhafi” e falou-se do “povo”, como se apenas os manifestantes pudessem ser considerados “povo”. Tudo isso tem por efeito criar opinião.

Essa imprensa multiplicou as reportagens do lado dos manifestantes, chegando mesmo a ter atitudes pouco compreensíveis da parte de repórteres certamente experientes. Como por exemplo um repórter francês completamente extasiado pelo facto dos manifestantes terem tomado um depósito de armas, que estavam a ser distribuídas a quem as solicitasse. Será que devemos ficar felizes pelo facto de populações civis andarem com armas de guerra, sem qualquer controlo, incluindo tanques de guerra, armas anti-aéreas, minas, lança-roquetes e metralhadoras de todos os tipos incluindo as suas munições?

A imprensa, rege-se pelos interesses ideológicos das suas redacções ou dos seus patrões e por interesses mercantis, muitas vezes, privilegiando o sensacionalismo mais do que a análise objectiva dos factos. A imprensa ocidental é considerada o “quarto poder” tendo em conta o papel que pode jogar na informação ao público sobre as decisões tomadas pelos órgãos detentores dos três poderes (executivo, legislativo e judicial). No entanto, a imprensa também pode influenciar e servir para influenciar a opinião pública e a comunidade internacional, dois conceitos mediáticos cuja existência e definição são cientificamente contestadas.

O que é concretamente a comunidade internacional? Somos forçados a constatar que a opinião do Presidente/Chefe do Governo de um país em vias de desenvolvimento não tem o mesmo peso que a opinião do Presidente/Chefe do Governo de um país desenvolvido.

Muitos Presidentes/Chefes do Governo e Ministérios dos Negócios Estrangeiros/Relações Exteriores de países em vias de desenvolvimento terão expressado publicamente a sua opinião relativamente ao “caso da Líbia”. No entanto, a imprensa internacional não acorda a esses pronunciamentos o mesmo peso ou importância que aos pronunciamentos dos Presidentes da França, dos Estados Unidos ou ao Primeiro-Ministro britânico e seus respectivos Ministros dos Negócios Estrangeiros.

A opinião dos governantes da França, dos Estados Unidos e do Reino Unidos passa vezes sem conta nos principais noticiários e jornais de todo o mundo, sobretudo os que têm um serviço dito “internacional”. Essa opinião da “comunidade internacional” que se resume a alguns países (entre os mais industrializados do mundo) influencia por sua vez as decisões que tomará o “resto da comunidade internacional”, incluindo no momento do voto de resoluções do Conselho de Segurança!

Nesse caso, temos que nos questionar sobre os interesses subjectivos dos três países (França, Estados Unidos e Reino Unido), cuja opinião se confundiu com ou se tornou a da “comunidade internacional”, mesmo que esses interesses sejam divergentes dos interesses da maioria dos países do mundo.

3. Sobre as relações entre a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América com a Líbia, e os interesses estratégicos destas potências ocidentais

República Francesa. Desde o fim da guerra fria, a política externa da França e os posicionamentos estratégicos desse país, sem dúvida um dos mais influentes do mundo, têm sido alvo de críticas e marcado por muitos passos em falso, nomeadamente relativamente à Yugoslávia/Sérvia/Croácia, ao Ruanda, ao Zaíre/RDC, à Côte d’Ivoire, às questões de imigração africana, e mais recentemente à Tunísia.

Relativamente à Líbia, recordamo-nos que em Dezembro de 2007, o “Líder” Muammar al-Kadhafi efectuou uma visita de cinco dias à França, durante a qual foi recebido três vezes (duas audiências e um jantar oficial) no Palácio Presidencial francês pelo Presidente Nicolas Sarkozy (que agora o chama “ditador” e que foi a Tripoli em Julho de 2007). Na altura, Secretária de Estado dos Direitos do Homem, Rama Yade, manifestou-se publicamente contra a visita do “Líder” Líbio a Paris, e por isso, foi “ralhada” pelo Presidente Nicolas Sarkozy. Na altura, Muammar al-Kadhafi já não era e ainda não tinha voltado a ser considerado “ditador”. Mas será que nessa altura o “Líder” era um democrata aos olhos do Presidente francês? Ou os interesses franceses sobrepunham-se às liberdades do povo líbio que hoje a França pretende defender?

A imprensa francesa, hoje muito crítica, extasiou-se pelas extravagâncias do “Irmão-Líder”, como o cortejo de mais de 20 viaturas blindadas, as “amazonas” que o protegem, a tenda onde ele ficou (no Parque do Hotel Marigny) e as visitas do "Líder"ao Museu do Louvre e a Versailles (praticamente encerrados para a ocasião).

Assim que começou o movimento insurreccional na Líbia, as autoridades francesas, que haviam prometido ao Presidente Ben Ali, o seu "savoir-faire" em matéria de policiamento de manfestações, manifestaram o seu apoio ao Conselho Nacional de Transição (CNT) criado em Benghazi, cujos membros foram recebidos pelo Presidente francês no dia 10 de Março de 2011. Ou seja, nessa altura Muammar al-Kadhafi voltara a ser um “ditador” e o seu dinheiro e parentes outrora recebidos sem qualquer problema em França e no Ocidente, de forma geral, deixaram de ser bem-vindos. Obviamente o dinheiro e bens móveis e imóveis que já se encontravam em território francês e ocidental, foram congelados.

Será que esta rapidez de alinhamento de Nicolas Sarkozy com o CNT, não serve para fazer esquecer a sumptuosa visita de Muammar al-Kadhafi a Paris? E será que não há interesses financeiro-petrolíferos em jogo?

Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. Este país foi, pelo passado severamente afectado por atentados terroristas cometidos por agentes da Líbia contra aviões civis comerciais que vitimaram algumas centenas de passageiros (caso do “atentado de Lockerbie” e do “voo DC-10 da UTA”).




Parte do voo DC-10 da UTA, que explodiu, em 1989, no deserto de Tenere (Niger). O atentado foi conduzido por agentes do Estado líbio

Em 2004, o Primeiro-Ministro Tony Blair deslocou-se à Líbia e foi recebido pelo “Líder” Líbio. Nessa altura a Líbia já tinha assumido a paternidade dos referidos atentados e indemnizado as famílias das vítimas (4 milhões de dólares Americanos por vítima). Pensamos que na altura em que o Primeiro-Ministro britânico visitou a Líbia, o povo, o Governo e a imprensa britânicos tinham plena consciência e conhecimento do grau de liberdades do povo líbio.

Estados Unidos da América. Entre 1979 e 2006, os Estados-Unidos da América e a Líbia iterroperam as suas relações diplomáticas. Cinco anos após os atentados de 11 de Setembro, e no auge da luta contra o terrorismo internacional, a Secretária de Estado referiu-se à excelente relação entre os dois países na luta contra o terrorismo.

Por outro lado, o lobby petrolífero fez pressão sobre o Congresso para a normalização das relações com a Líbia, o que foi feito, apesar dos alertas de exilados líbios nos Estados Unidos, segundo os quais a situação dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais na Líbia não iria melhorar (http://www.afrik.com/article9841.html) .

Os Estados Unidos, como qualquer Estado, defendem os seus interesses. Mas nem todos se permitem fazê-lo sem ter em conta a comunidade internacional.

É hoje um facto de domínio público que esse país, uma das mas antigas democracias do mundo conduziu uma guerra de agressão contra as autoridades de um país membro da Organização das Nações Unidas (o Iraque), com base em informações completamente falsas e cuja falsidade era de conhecimento dos serviços de inteligência desse país.

É igualmente de domínio público que na sequência do desfecho da acção militar americana, empresas americanas de construção, de petróleo e gás, e de fornecimento de bens e serviços obtiveram contratos de natureza diversa no Iraque, orçados em muitos milhões, de unidades qualquer que seja a moeda escolhida.

Ou seja, os Estados Unidos da América utilizaram a sua superioridade militar para destituir um Presidente que não correspondia aos seus interesses estratégicos, económicos e energéticos. Acção que é claramente contrária ao princípio de não-ingerência defendido pela Organização das Nações Unidas e afectou a paz mundial, contribuindo para a propagação e desenvolvimento do terrorismo no Iraque, que vitimou milhares de vidas entre civis iraquianos, funcionários internacionais, jornalistas, militares e polícias iraquianos, americanos e de outras nacionalidades envolvidas, sem contar a destruição de infrastruturas.

Recordamos ainda que no quadro dessa guerra, os Estados Unidos da América e seus aliados, recorreram aos serviços de mercenários. Por outro lado, militares americanos cometeram aquilo que as Convenções de Genebra de 1949 definem como sendo crimes de guerra.

Os elementos que precedem não são opiniões! no passado, as acções desses países foram, por vezes, contrárias à paz mundial e movidas por interesses subjectivos, bastante distintos daqueles que estão plasmados na Carta das Nações Unidas.

Conhecer e compreender os posicionamentos desses três Estados membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas é importante, na medida em que esses Estados votaram a Resolução 1973 (a França e o Reino Unido introduziram o projecto de resolução), estão na primeira linha dos ataques contra a Líbia e os seus Presidentes/Primeiro-Ministro pronunciaram-se publicamente pela abdicação do Presidente Kadhafi.

Tendo em conta que a Líbia é um dos seus Estados membros, importa questionarmo-nos sobre o que pensa a União Africana de tudo isto? Será que a Organização vai ficar espectadora assistindo à emergência de uma guerra civil no continente e ao bombardeamento de um Estado membro?