quinta-feira, 24 de março de 2011

Reflexão sobre o caso da Líbia - parte 2




4. Que papel para a União Africana?

No dia 10 de Março de 2011, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana (CPS/UA) reuniu-se em Addis Abeba, Etiópia e, entre outros assuntos, debruçou-se sobre o “caso da Líbia”.
No comunicado da sua 265ª reunião (http://www.au.int/fr/sites/default/files/Communiqué%20Libya%20_eng_%20final.pdf), o CPS/UA manifestou a sua preocupação face aos acontecimentos na Líbia, sublinhou a legitimidade das aspirações do povo líbio “à democracia, reforma política, justiça social, à paz e segurança, assim como ao desenvolvimento sócio-económico” e à necessidade que essas aspirações sejam satisfeitas “de forma pacífica e democrática”. O CPS/UA declara igualmente ter tomado nota “da vontade das autoridades líbias de se engajar na via das reformas”.

O CPS/UA, defendeu o respeito da integridade territorial da Líbia, assim como a rejeição a qualquer intervenção militar estrangeira.

Como forma de resolver a crise, a União Africana decidiu criar um Comité composto por cinco Chefes de Estado (dos seguintes países: África do Sul, Congo, Mali, Mauritânia, e Uganda) e pelo Presidente da Comissão, com mandato para interagir com todas as partes líbias, facilitando o diálogo entre elas sobre as reformas apropriadas. O Painel de Chefes de Estado recebeu igualmente mandato para interagir com os parceiros da União Africana, coordenando os seus esforços para a resolução da crise.

Em nossa opinião, a decisão do Conselho de Paz e Segurança foi equilibrada e no sentido de preservar tanto a paz e o diálogo entre as partes líbias, como a integridade territorial da Líbia.

Estas decisões da União Africana mereceram muito pouca cobertura da parte da imprensa internacional, que estava mais preocupada em acompanhar a delegação do Conselho Nacional de Transição criado em Benghazi, cujos representantes foram recebidos nesse mesmo 10 de Março pelo Presidente Nicolas Sarkozy.

É certo que o Painel de Chefes de Estado não constitui uma força militar e dificilmente conseguiria convencer o “Irmão-Líder” a cessar a progressão do exército contra o último e principal bastião da oposição. Mas os parceiros da União Africana poderiam ter tentado colaborar com a organização continental na materialização do mandato do Painel, o que não aconteceu.

De acordo com o Comunicado da Reunião do Painel de Alto Nível da União Africana sobre a Líbia, datado de 19 de Março de 2011, o Painel solicitou a autorização para se deslocar à Líbia, a fim de manter encontros com o Governo da Líbia e com o Conselho Nacional de Transição. É difícil compreender que razões estarão por detrás do bloqueio de uma tentativa de mediação da União Africana, que nos conduz a reflectir sobre a legitimidade das medidas tomadas no quadro da sua implementação.

5. Sobre a Resolução 1973 e a legitimidade das medidas tomadas no quadro da sua implementação

A Resolução 1973 foi votada no dia 17 de Março de 2011. Introduzida pela França, pelo Reino Unido e pelo Líbano, essa Resolução foi votada por dez membros do Conselho de Segurança (França, Reino Unido, Líbano, Estados Unidos, Bosnia-Herzegovina, Gabon, Nigéria, Portugal e África do Sul). Cinco abstiveram-se (Rússia, China, Brasil, Alemanha e Índia).

Notamos que dois membros permanentes manifestaram pela sua abstenção as suas reservas e dúvidas (ver o blogue de Jean-Dominique Merchet – jornalista francês, especialista em questões militares http://www.marianne2.fr/blogsecretdefense/?start=10).

A China recordou que sempre se opôs ao recurso à força nas relações internacionais e considera que alguns aspectos da Resolução não estavam claramente definidos. Esta foi igualmente a razão da abstenção da Rússia, que tinha, no momento do voto muitas dúvidas quanto aos modos de implementação da Resolução.

A Índia notou a falta de existência de informação credível sobre a situação que permitisse justificar o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea. O Brasil por seu lado considerou que as medidas propostas vão para além da solicitação da Liga Árabe, notando que não está convencido que a utilização da força permitirá atingir o principal objectivo das Nações Unidas e da Liga Árabe, ou seja a protecção das populações civis.

Podemos compreender que esses cinco Estados, que também são parte da comunidade internacional, e entre os quais estão dois membros permanentes e três que poderão no quadro de uma reforma do Conselho de Segurança, eventualmente, integrá-lo na qualidade de membros permanentes, emitiram sérias reservas quanto à implementação da Resolução que se enquadra no capítulo 7.

Notamos igualmente que três países africanos (Nigéria, Gabon e África do Sul), dos quais dois são actualmente membros do Conselho de Paz e Segurança (África do Sul e Nigéria) votaram a Resolução 1973, apesar desta ultrapassar claramente a decisão do Conselho de Paz e Segurança da União Africana. A decisão da África do Sul em votar a Resolução 1973 é ainda mais incompreensível, na medida em que este país é igualmente membro do Painel criado pela União Africana. Então, podemos questionar-nos com alguma preocupação, sobre o tipo de união continental que estamos a criar e sobre a coordenação entre a agenda continental e a agenda internacional de alguns Estados membros da União Africana.

Logo após os primeiros bombardeamentos, algumas vozes, nomeadamente a de Amr Moussa, Secretário-Geral da Liga Árabe criticaram os ataques aéreos, considerando que essas operações ultrapassam o mandato que foi conferido pela Resolução 1973.

O que diz concretamente a Resolução 1973?

A Resolução determina o cessar-fogo imediato (depreende-se que seja tanto por parte do exército como por parte da insurreição); a cessação das violências contra os civis (sem especificar quais, partimos que são todos os que se encontram em território líbio); estabelece uma interdição de todos os voos no território da Líbia; e estabelece um embargo sobre as armas em direcção da Líbia. Por outro lado, a Resolução exclui a possibilidade de se estabelecer uma força estrangeira de ocupação no território líbio.

Sabendo qual é o mandato da Resolução 1973, questionamo-nos: o que temos estado a assistir desde o dia 19 de Março? Unidades dos exércitos francês, britânico e americano têm estado a bombardear as posições avançadas do exército líbio a caminho de Benghazi, têm estado a bombardear as unidades da defesa anti-aérea em todo o território da Líbia, e de acordo com declarações de representantes desses exércitos, preparam-se para bombardear os principais centros de comando do exército da Líbia, assim como estruturas governamentais.

Fica difícil compreender como é que estas acções se enquadram na Resolução 1973. Pois, a Resolução 1973 não confere aos exércitos que agem para aplicá-la mandato para destruir o exército líbio; não lhe confere mandato para alterar o equilíbrio entre o exército da líbia e os insurgentes em Benghazi; e não confere mandato a esses exércitos para atacar edifícios administrativos ou mesmo mandato para agir em zonas nas quais não haja civis cuja vida se encontre ameaçada no quadro das operações do exército da Líbia contra os insurgentes. Então o que é que justifica o bombardeamento de Tripoli? (http://www.france24.com/fr/20110320-libye-attaque-coalition-internationale-france-avions-navire-missiles-tripoli-kadhafi-bombardement)

Relativamente à protecção dos civis, conforme o mandato conferido pela Resolução 1973, temos de ter em conta que dos dois lados há civis armados, que tomam parte em acções militares. Podemos ainda considerá-los civis ou vamos considerar que esses indivíduos assumem o papel de forças para-militares? E se o exército nacional de um país opera contra milícias de insurgentes, por definição forças para-militares ilegais, podemos considerar que o exército nacional está a atacar civis? Recordamos que no quadro da lei americana USA PATRIOT act, todos os indivíduos capturados com armas na mão foram considerados “inimigos combatentes” e julgados em tribunais militares especiais, ou seja, os Estados Unidos consideram que um indivíduo armado e que age contra um exército deixa de ser um civil.